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Condenado terrorismo na França, argelino vive como professor em universidade federal do Brasil

De sandálias de couro, instalado numa sala pequena no 3º andar do departamento de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o físico Adlène Hicheur, 39 anos, tem o physique du rôle atribuído aos cientistas. É magro, tem olheiras profundas e trabalha em uma pequena escrivaninha aboletada de livros. Disciplinado, Hicheur, toda sexta-feira, se desloca para fazer suas orações numa mesquita na zona norte do Rio de Janeiro. Argelino de nascimento e naturalizado francês, Hicheur tem um segredo em sua biografia que o pôs sob investigação da Polícia Federal brasileira. Em 2009, ele foi preso e condenado na França a cinco anos de detenção pela acusação de planejar atentados terroristas.

Até ser preso, Hicheur era considerado um cientista brilhante, especialista em física das partículas elementares. Ele integrava a equipe da Organização Europeia de Pesquisa Nuclear (CERN, na sigla em francês) que mantém em Genebra, na Suíça, o maior laboratório de aceleração de partículas do mundo, uma espécie de santuário para os PhDs da área. Em 2009, ele teve uma crise de dores na coluna, tirou uma licença médica e foi para a casa dos pais, na França. Lá, passou a frequentar um fórum na internet usado por jihadistas e a trocar mensagens com um interlocutor apelidado de “Phenix Shadow” (fênix da sombra, numa tradução literal). Sob essa alcunha, escondia-se a identidade de Mustapha Debchi, apontado pelo governo francês como um membro da Al Qaeda na Argélia.

O site já era investigado pela polícia francesa, que identificou potencial de risco nas mensagens enviadas por Adlène Hicheur e passou a monitorá-lo. ÉPOCA obteve os 35 e-mails trocados
por ele e decriptografados pela inteligência francesa. Eles usavam um programa de criptografia chamado Asrar, criado pela Al-Qaeda para trocar informações e armazenar conversas sigilosas.
As mensagens entre “Phenix Shadow” e Hicheur começaram genéricas. “Phenix Shadow” menciona o governo do então presidente francês Nicolas Sarkozy, para quem, diz ele, a sua hora chegaria “em breve”. Na sequência, “Phenix” pergunta a Hicheur se ele estaria disposto a fazer um ataque suicida. Recebe uma negativa como resposta. Ao longo da conversa, “Phenix” fez uma abordagem sem rodeios a Hicheur: “Caro irmão, vamos direto ao ponto: você está disposto a trabalhar em uma unidade de ativação na França? Que tipo de ajuda poderíamos te dar para que isso seja feito? Quais são suas sugestões?”.

A resposta de Hicheur veio cinco dias depois. “Sim, claro”. Ele esclarece ainda que planejava deixar a Europa nos próximos anos, mas que poderia rever o plano. Para permanecer, Adlène Hicheur colocou uma condição: a criação de uma estratégia precisa: “Trabalhar no seio da casa do inimigo central e esvaziar o sangue de suas forças”. Para o plano da “unidade de ativação” na França, Hicheur sugere diversos alvos. “Precisamos trabalhar para acelerar a recessão econômica, ou seja, atingir as indústrias vitais do inimigo e as grandes empresas, como Total, British Petroleum, Suez”, escreveu Hicheur, que também menciona também ataques a embaixadas. Os alvos seriam os governos que ele classificou de “incrédulos”: “Executar assassinatos com objetivos bem estudados: personalidades europeias ou personalidades bem definidas que pertençam aos regimes incrédulos (em embaixadas e consulados, por exemplo)”.

 

 

 

 

 

 

 

Fiéis durante oração na Mesquita da Luz (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)

Com mensagens tão claras, a polícia francesa decidiu prender Hicheur. Afastou-se a possibilidade de que a conversa seria apenas uma postura crítica ao governo – ou o exercício da liberdade de expressão. A polícia ainda encontrou em seu computador um arquivo criptografado no qual se discutia o envio de € 8.000 euros para a Al Qaeda. Ao ser preso, ele disse que era um “bode expiatório”. Muitos de seus colegas ficaram ao seu lado. Em uma carta enviada em 2011 para Sarkozy, um grupo de cientistas questionou a prisão de Hicheur. Imaginavam que o franco-argelino era apenas um usuário a mais navegando em fóruns na internet. Naquele momento, contudo, a polícia francesa ainda não tinha divulgado os e-mails sobre os ataques, que nunca foram desmentidos por Hicheur e revelaram-se decisivos para que a Justiça francesa o condenasse como terrorista.

Em 2012, o caso de Hicheur foi citado num estudo da ONU sobre o uso da internet em atentados terroristas. Virou exemplo das “diferentes formas em que a internet pode ser usada para facilitar a preparação de atos de terrorismo, incluindo comunicações entre organizações que promovem o extremismo violento”. Depois de obter a liberdade condicional, em 2012, Hicheur dedicou-se a duas coisas: mudar informações na Wikipedia a seu respeito, que mencionam  o caso de terrorismo, e a tentar recuperar o emprego no CERN. Ele foi barrado, porém, pela polícia suíça. Em abril de 2015, ao julgar um recurso de Hicheur, a Justiça suíça manteve a proibição da presença do cientista no país até abril de 2018. “A gravidade dos fatos leva o tribunal a considerar que a manutenção da interdição de entrada se justifica por motivos ligados à segurança interior e exterior da Suíça. As atividades executadas pelo recorrente são, com efeito, objetivamente de uma gravidade suficiente para justificar a decisão de afastamento”, diz a decisão da Justiça.

O que a Suíça considerou grave não foi impedimento para que Hicheur viesse para o Brasil, onde ele entrou em 2013 depois de obter uma bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). O órgão diz que, ao contratar, faz “análise baseada no mérito científico da proposta e no currículo do candidato”. Desde então, Hicheur vive no Rio e tem visto de trabalho  garantido pela Universidade Federal do Rio Janeiro até julho deste ano. Entre 2013 e 2014, Hicheur recebeu R$ 56 mil como bolsista do CNPq. Depois, tornou-se professor visitante da UFRJ, com salário de R$ 11 mil por mês. Questionada por ÉPOCA sobre os antecedentes de Hicheur, a UFRJ disse que a sua contratação seguiu as normas usuais para professores visitantes estrangeiros, de quem são exigidos passaporte com visto.

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No Brasil, Hicheur leva uma vida discreta. Mas isso não impediu que ele virasse alvo de uma operação secreta do grupo antiterrorismo da PF, em outubro. Sua casa e seu laboratório na UFRJ sofreram uma busca e apreensão, com autorização da Justiça. A investigação da PF começou quase por acaso – depois de uma reportagem da CNN em espanhol, que entrevistou frequentadores de uma mesquita no Rio de Janeiro sobre o atentado ao semanário Charlie Hedbo, em Paris, em janeiro de 2015, que deixou 12 mortos. Durante a reportagem, um dos entrevistados defendeu o ataque e tirou a camisa. Por baixo, ele estampava outra roupa com o símbolo do Estado Islâmico. Na tentativa de identificar o autor da mensagem pró-terrorismo, a PF descobriu que Hicheur frequentava a mesquita. O cientista passou então a ser um alvo prioritário da polícia, que apura se há ligações dele com o ato registrado no vídeo. ÉPOCA descobriu que Hicheur procurou o Ministério da Justiça, em setembro de 2014, para pedir a alteração da sua nacionalidade, no visto de permanência no Brasil, de francesa para argelina. Isso significa que, no caso de uma expulsão de Hicheur do Brasil, ele seria deportado para a Argélia e não para a França, onde foi condenado.

Uma das listas da Interpol, a polícia internacional, é a chamada difusão verde, com informes sobre pessoas que já cometeram crimes e que representam uma ameaça. ÉPOCA questionou a embaixada da França em Brasília se Hicheur foi alvo de comunicações desse gênero e se outros países foram informados da condenação, como forma de fazer controle na fronteira – a exemplo do que fez a Suíça. A embaixada não se pronunciou especificamente sobre o caso. “A Embaixada da França não se manifestará sobre a situação atual do senhor Adlène Hicheur”. De acordo com a nota, “tratando-se da luta contra o terrorismo, as autoridades francesas competentes mantêm um diálogo estreito, direto e útil com as autoridades brasileiras competentes”. A instituição informou ainda que, como ele tem nacionalidade francesa, ele não está impedido de voltar à França.

No Rio, Adlène Hicheur mora em um prédio de quatro andares de classe média numa rua tranquila do bairro da Tijuca. Por ainda tropeçar na língua portuguesa, o porteiro tem dificuldades para compreendê-lo e, sem gravar o nome do inquilino, o identifica “como um rapaz barbudinho” que costuma sair por volta das 7h e só voltar à noite. Segundo vizinhos, houve uma mudança brusca na rotina do cientista, que mandou um familiar de volta para a Europa e passou a viver sozinho. Na UFRJ, Hicheur ocupa uma sala pequena no final de um corredor mal iluminado, no terceiro andar do Instituto de Física.ÉPOCA o localizou lá no começo da tarde da última quinta-feira. A surpresa da visita o deixou nervoso. Começou a tremer e se recusou a dar entrevista. “Não posso falar e gostaria de ser deixado em paz. Se você escrever ou falar qualquer coisa, você não imagina as consequências para você e para mim. É só isso”, disse o professor, sem explicar a que se referia exatamente. “Esse tipo de assunto hoje em dia não é assunto tratado de maneira analítica e com razão. Estamos numa época de histeria”, afirmou. “Eu decidi não falar nada só para reconstruir minha vida. Não é porque eu não tenha razão. Eu tenho razão. Tenho muita coisa para falar. Mas deixa o tempo falar sobre isso.” Em seguida, acrescentou: “Não sou uma pessoa pública. Estou protegendo minha vida privada e de minha família. Não tenho qualquer  impacto sobre o destino do mundo.” Por fim, deixou uma incógnita no ar sobre a operação de busca e apreensão feita pela PF em sua casa e no laboratório da universidade: “Sua informação não vem da Polícia Federal. São eles que contataram você (de ÉPOCA)”. Ele não esclareceu quem seriam “eles”.

Os líderes da Mesquita da Luz, no Rio, querem que a Polícia Federal descubra a identidade e o paradeiro do homem que se manifestou a favor de terroristas, dentro do templo, logo após o atentado contra o Charlie Hebdo no ano passado. A Sociedade Muçulmana do Rio de Janeiro, responsável pela mesquita, tem repudiado publicamente os ataques do Estado Islâmico, em especial o que ocorreu de novembro passado em Paris. Para o presidente da entidade, Mohamed Zeinhom Abdien,  muitas pessoas não distinguem terroristas dos seguidores do islamismo e isso aumenta a estigmatização dos muçulmanos. “Denunciamos a ação do simpatizante do Estado Islâmico à Polícia Federal. Queremos mostrar que a gente não concorda com essas coisas. Nossa religião não é essa. Queremos viver em paz com o próximo”, diz Abdien, que não foi informado sobre o resultado da investigação pela PF.

A investigação da PF sobre Adlène é baseada na suspeita de incitação ao crime e propaganda em favor da guerra. Embora a Constituição de 1988 cite terrorismo, até hoje o Congresso Nacional não criou uma lei para classificar o que seria um ataque terrorista. Por isso, as investigações sobre ameaças terroristas no Brasil têm de se basear em crimes laterais, sempre com penas mais brandas. Com os ataques a Paris em novembro, ganhou força a discussão de um projeto de lei para enfim criminalizar o terrorismo. Mas, por causa da situação política atribulada do país, sua votação pela Câmara ficou para este ano – se o debate sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff não atrapalhar. O projeto prevê penas duras para quem executar, financiar, preparar ou fazer apologia a atos terroristas. Há um ponto específico que interessa aos especialistas em terrorismo: o combate aos chamados “atos preparatórios”. Ou seja, planejar – antes mesmo de executar um atentado – já será considerado crime. Com esse enquadramento, as autoridades policiais esperam viabilizar operações para que os atentados sejam evitados. Se a nova lei for aprovada, mensagens como a de Hicheur (“executar assassinatos com objetivos bem estudados”) possivelmente teriam o mesmo entendimento dado pela Justiça francesa. Hoje, contudo, há um vácuo jurídico. No ano passado, a PF realizou pelo menos quatro operações antiterrorismo, sempre baseadas em crimes menores. Enquanto as Olimpíadas se aproximam e o Congresso não se apressa em votar uma legislação anti-terror, o Brasil vive uma situação diferente de outros países: combate um terrorismo sem dispor de uma lei.

Revista Época

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