Por que os Conselhos Federais não implantaram o RJU na década de 1990?
Muitos acham que as decisões judiciais e orientações dos Tribunais são decorrentes da sensatez dos julgadores; ser sensato é agir com bom senso, e o que é bom senso para alguns pode não ser para outros…
Para evitar o achologismo ou achismo nas decisões, os Ministros dos Tribunais Superiores e os juízes se baseiam em referências legais para darem robustez às suas decisões.
Para tanto, fazem uso principalmente de documentos técnicos, julgados anteriores, normas legais, e princípios constitucionais.
Para melhor compreender o contexto da questão, é importante reler atentamente os julgados na esfera da Justiça Federal, do STF, do TCU e da Justiça do Trabalho desde a Constituição Federal de 1998, momento em que foi instituído o Regime Jurídico Unificado na Administração Pública Federal, inclusive nas autarquias, como os conselhos profissionais.
Revolvendo-os, chega-se a documentos relacionados a duas instituições de âmbito federal que existiram no passado: a Secretaria da Administração Federal (SAF), órgão ligado ao Ministério do Planejamento [1], e a Consultoria Geral da União (CGR), hoje Advocacia Geral da União.
Estes documentos foram utilizados para justificar posições jurídicas sobre, por exemplo, aplicabilidade do RJU nos conselhos, influenciando, direta ou indiretamente, inclusive, juízes e Ministros de Tribunais Superiores.
Para melhor compreender a evolução e impacto dos fatos jurídicos e administrativos no mundo dos conselhos entre 1988 e, principalmente, 1998, sobre os quais a SAF e a CGR tiveram influência direta, os eventos serão descritos em ordem cronológica. A íntegra de alguns documentos citados emitidos pela SAF não estava disponível nos sítios eletrônicos consultados[2].
– Até 1988, ano da promulgação da atual Constituição do Brasil, a forma de contratação e o regime jurídico eram estabelecidos pela lei que criou cada conselho profissional, ou pelo Decreto-lei 968/69; ou seja, a contratação de funcionários era sem concurso público e o regime de trabalho obedecia a CLT.
– Em 1988, a Constituição Federal (CF) modifica esse panorama. O artigo 37 estabelece que as autarquias em geral (independentemente se fossem especiais, atípicas, típicas, corporativas…) devem contratar seu pessoal somente através de concurso público; e o artigo 39 estabelece um regime jurídico unificado para as carreiras dessas autarquias. Assim, sob o olhar do direito constitucional, a CF não permitiu mais que autarquias contratassem seu pessoal através da CLT ou sem concurso público. Isto foi, muito provavelmente, um sinal de alerta aos conselhos profissionais, pois, sendo autarquias, deveriam se adequar à nova regra.
– Em 1989, o Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA) solicita parecer à CGR sobre o uso do Brasão da República em documentos emitidos pela autarquia (Processo administrativo GCR 00001001481/89-17. [3].
– Em 18/01/1991, a SAF emite o Ofício Circular 03/91 a todos os Dirigentes de Recursos Humanos de Administração Federal Direta, Autarquias e Fundações Públicas, comunicando-lhes a Orientação Normativa 56: O disposto no § 1º do artigo 243, da Lei nº 8.112, de 1990, determinou a automática transformação dos empregos e a investidura nos conseqüentes cargos efetivos, independentemente de posse. Em outras palavras, os conselhos, por serem autarquias, deveriam transformar os empregos celetistas existentes na época, e nas condições previstas na Lei 8112/90, em cargos públicos sob regime estatutário!
– Reforçando tal tese, o TCU decide em 05/06/1991, que: … os ditames da Lei nº 8112/90 se aplicam aos servidores do Conselho Regional de Enfermagem, enviando-lhe para seu total conhecimento cópia do inteiro teor do presente Relatório/Voto; e 2º) recomendar à autoridade consulente (no caso, era o Conselho de Enfermagem) que quaisquer outras dúvidas relacionadas com aplicação da Lei 8112/90 e legislação correlata sejam encaminhadas à Secretaria da Administração Federal – SAF/PR, a quem compete orientar normativamente e supervisionar os assuntos referente ao pessoal civil da Administração Pública Federal, conforme dispõe o art. 15 da Lei nº 8028/90, evitando-se, assim, interferência desta Corte nas funções daquele órgão [4].
– As orientações da SAF e do TCU vão ao encontro às primeiras decisões na Justiça Federal sobre aplicabilidade da Lei 8112/90 nos conselhos profissionais. Por exemplo, na decisão do processo TRF-DF 91-0018261-3, em 1991, o recorrente pleiteava direito ao RJU (Lei 8112/90) contra CONFEA, e o juiz concede o direito à transformação do emprego celetista em cargo estatutário.
– Em 18/06/91, a SAF emite Nota SAF nº 399/91 baseada no Parecer DRH/SAF 367/90 [5], os quais foram citados na Ata 21 de 19/06/02 do processo TC 625.296/1996-6 do TCU, no item que caracteriza a natureza autárquica dos Conselhos e Ordens:
“[…] Vale citar dois entendimentos do judiciário no sentido de que os conselhos de fiscalização profissional tem natureza autárquica e submetem-se à fiscalização do TCU:
1) decisão da 20ª Junta de Conciliação e Julgamento do Rio de Janeiro, presidida pelo Juiz togado Érico Santos da Gama e Souza – ‘E a natureza autárquica, muitas vezes dita também corporativa, das Ordens e dos Conselhos de fiscalização de profissões está hoje no País reconhecida por copiosa e variada jurisprudência superior, judicial e administrativamente, assim como por atos administrativos de repartições federais, sobretudo úteis quando a lei instituidora da entidade não aclara o problema (consulte-se, a propósito, STF, Representação nº 1.169 – DF, Pleno, v. u., ac. de 08.08.1984, RTJ,111:87; STF, MS nº 10.272, ac. de 08.05.1963; TRT/SP, ac. M. 792/92- P, no MS proc. nº 574/91 – P, ac. de 18.08.1992, TRF, 3ª Região, RO nº 90.03.33977 – 5 – SP, ac. de 14.04.1992; TRT 3ª Reg., ac.TRT/RO nº 5.334/89, de 1º.08.1990; TCU, ac. de 12.08.1992, proc. nº 25.838/91-1; SAF, Nota nº 399/91, de 18.06.1991, cf. Parecer DRH nº 367/90; TCU, proc. nº 11.475/98-7, com menção à Súmula 110 do TCU, DOU, 20 abr. 1990; TCU, decisão nº 193/92, de 08.09.1992, DOU, 21 set. 1992, p. 13238; TCU, decisão nº 234/92, de 13/05/92, entre inúmeras outras decisões no sentido de que os órgãos fiscalizadores do exercício profissional são autarquias).’ (`in’ Comentários ao Regime Único dos Servidores Públicos Civis, 2ª edição, Editora Saraiva, págs. 14/17) (grifamos) Portanto, é inegável a natureza autárquica da reclamada.
[…]”
Nos documentos grifados percebe-se que a SAF manifestara-se que os conselhos profissionais eram autarquias e deveriam aplicar o RJU previsto na Lei 8112/90; caso contrário, a decisão do TCU não faria sentido.
– Em 12/08/1991, com o objetivo de uniformizar procedimentos, a SAF edita Ofício Circular nº 33, no qual, comunica que a partir desta data, as consultas sobre interpretação e aplicação de legislação somente serão aceitas para análise neste Departamento quando apresentadas pelos Órgãos setoriais do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal – SIPEC.
Isto permite pensar que havia um número considerável de consultas sobre a nova ordem jurídica de pessoal no serviço público, e muito provavelmente os conselhos profissionais eram consulentes de expressão.
Entre 1988 e 1991, várias consultas sobre a aplicabilidade da Lei 8112/90 aos empregados de conselhos chegam à SAF. Como suas unidades técnicas não chegam a uma unicidade sobre o tema, a Secretaria da Administração Federal solicita à CGR, em 1991 (processo administrativo CGR 00001002871/91-12) parecer sobre a aplicabilidade do artigo 37 (concurso público) e artigo 39 (regime jurídico unificado) da CF, e artigo 19 das ACDT (estabilidade), e demais disposições da Lei 8.112/90 [6].
Em 20/11/1991, o Conselho Federal de Farmácia (CFF) ingressa com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 641) no STF, questionando a legalidade de algumas atribuições privativas aos nutricionistas, descritas na Lei 8234/91, pois o CFF entendia que eram afins com outras profissões, como a Farmácia. Em dezembro de 1991, o STF julga o pedido do CFF, easseverou serem os Conselhos de fiscalização profissional autarquias inseridas na estrutura do Poder Executivo Federal: o Conselho Federal não pode impetrar ADI, pois é uma autarquia do tipo corporativa [7].
Em 1992, enquanto a CGR consultava a matéria sobre o uso do brasão postulada pelo CONFEA, esta autarquia,preocupada com a necessidade de adequação de pessoal e pelo fato de ser réu em algumas ações judiciais impetradas em 1991 para aplicação do RJU[8], solicita também informações sobre a natureza jurídica dos conselhos e aplicabilidade do artigo 37 e artigo 39 da CF, e artigo 19 das ACDT [9].
Devido à semelhança do pedido que a SAF fizera à CGR, o CONFEA, certamente, foi um dos conselhos que solicitara informações à SAF antes de agosto de 1991.
Durante 1992, sabendo que os conselhos profissionais deveriam aplicar a Lei 8112/90, sindicatos de servidores de conselhos ajuízam ação na Justiça Federal contra a SAF e Conselhos Federais, pois não estava sendo aplicado o RJU previsto na Lei 8112/90 [10].
Em agosto de 1992, a CGR responde ao pedido da SAF (Despacho 09): o Consultor da República se abstém de analisar a matéria e emitir parecer, pois alega que a aplicabilidade da Lei 8112/90 aos conselhos profissionais estava sob judicedevido aos processos TRF-DF 92-0005593-1 e TRF-DF 91-0018261-3 [11].
Em novembro de 1992, a CGR responde ao pedido do CONFEA (Parecer CGR JCF 9): o Consultor da República opta por uma decisão evasiva (comum na época) de aguardar o desfecho dos processos na Justiça Federal, no que se refere à aplicação da Lei 8.112/90, pois a matéria estaria sob judice [12].
No entanto, diferentemente ao pedido da SAF sobre o mesmo tema, o Consultor da República analisa a matéria e emite considerações sobre o assunto:
A decisão de aguardar o julgamento das ações na justiça federal e, principalmente, a sutileza de acrescentar sua opinião de que não se aplica o artigo 37 da Constituição Federal, o artigo 19 dos ADCT, e da Lei 8112/90 aos conselhos profissionais, foi conveniente ao interesse do CONFEA, pois era parte ré nos processos citados no parecer do Consultor da República; e foi conveniente ao interesse dos conselhos profissionais das outras profissões.
Desta forma, o CONFEA e os demais conselhos poderiam alegar aos juízes federais julgadores das ações judiciais, das quais porventura fossem réus, que a Consultoria Geral da República entendia que a aplicação da Lei 8112/90 nos conselhos não era obrigatória, podendo se beneficiar com a situação!
No entanto, a orientação da CGR ao CONFEA e à SAF contrariava a corrente existente à época, após edição da Lei 8112/90. Nesse sentido, ressalta-se a visão legal da:
a- Justiça Federal: na decisão contida na Apelação em Mandado de Segurança nº 92.01.25982-4 DF (processo utilizado como justificativa pela CGR de que a matéria estaria sob judice), em novembro de 1993, impetrado pelo CONFEA, émantida a transformação de emprego para cargo público (art. 243 da lei 8.112) e o plano de seguridade social aplicável aos empregados seria criado a partir das fontes de renda que a lei criadora dos conselhos lhes destinou; isto é, deve ser aplicado o RJU!
b- Tribunal de Contas da União: na decisão proferida no Acórdão 111, em agosto de 1993, é recomendado “ao Presidente do Conselho Federal de Odontologia que aplique os ditames da Lei 8.112/90 aos servidores daquele Conselho Federal”.
c- Congresso Nacional: é publicada a Lei 8906, em julho de 1994, na qual, dentre várias providências, modifica o regramento da OAB. O artigo 79 estabelece que o regime de trabalho passa a ser trabalhista (CLT); no entanto, aos servidores da OAB, sujeitos ao regime da Lei nº 8112/90 é concedido o direito de opção pelo regime trabalhista, no prazo de noventa dias a partir da vigência da lei, sendo assegurado aos optantes o pagamento de indenização, quando da aposentadoria, correspondente a cinco vezes o valor.
Isto quer dizer que o regime até então era estatutário, não?
A Justiça do Trabalho, contudo, divergia sobre a aplicabilidade da Lei 8112/90:
a- em 19/08/93, a 3ª turma do TST, ao julgar o Recurso de Revista RR 39912 de 1991, decide por maioria que os conselhos profissionais não estão tutelados ao regime jurídico unificado.
b- no entanto, em 31/08/94, a 5ª turma do TST se julga incompetente para julgar o Recurso de Revista RR 82699 de 1993, contra conselho profissional, pois, por unanimidade, os Ministros entendem que os servidores destas autarquias estão tutelados ao regime jurídico único.
Mesmo com as orientações jurídico-legais existentes à época no sentido de que os conselhos profissionais devessem implantar a lei 8112/90, tanto a SAF (leia-se Governo Federal) e a diretoria dos conselhos federais se esconderam no argumento do ‘sob júdice’ dos pareceres da CGR…
E os conselhos continuaram contratando através do regime trabalhista sem concurso público (CLT), e o Governo Federal, através de sua Secretaria de Administração, nada fez administrativamente para modificar o panorama!
Pasmem: os conselhos usavam como argumento a vigência do Decreto-lei 968/69 (infraconstitucional e revogado pela Lei 8112/90) e a análise (impessoal?) do Consultor da República no Parecer JCF 09, referente ao processo 00001001481/89-17!
Esta prática perdurou por vários anos, inclusive após maio de 2001, quando o concurso público passou a ser obrigatório nos conselhos, e mesmo após sucessivas decisões da Justiça Federal julgadas entre 2004 e 2009 pelo STJ [13] no sentido de que:
a- Os conselhos de fiscalização profissional possuem natureza jurídica de autarquia, sujeitando-se, portanto, ao regime jurídico de direito público, conforme precedentes do STF e do STJ. b- Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, era possível, nos termos do Decreto-lei 968/69, a contratação de servidores, pelos conselhos de fiscalização profissional, tanto pelo regime estatutário quanto pelo celetista, situação alterada pelo art. 39, caput, em sua redação original. c- Para regulamentar o disposto na Constituição, o legislador inseriu na Lei 8.112/90 o art. 243, § 1º, pelo qual os funcionários celetistas das autarquias federais passaram a ser servidores estatutários, não mais sendo admitida a contratação em regime privado, situação que perdurou até a edição da Emenda Constitucional 19/98 e da Lei 9.649/98. d- No julgamento da ADI 1.717/DF, em 07 de novembro de 2002, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a natureza jurídica de direito público dos conselhos fiscalizadores, ao declarar a inconstitucionalidade do art. 53 da Lei 9.649/98, com exceção do § 3º, cujo exame restou prejudicado pela superveniente Emenda Constitucional 19, de 04 de junho de 1998, que extinguiu a obrigatoriedade do Regime Jurídico Único. e- Em 02 de agosto de 2007, porém, o Supremo Tribunal Federal deferiu parcialmente medida liminar na ADI 2135/DF, com efeitos ex nunc, para suspender a vigência do art. 39, caput, da Constituição Federal, com a redação atribuída pela referida emenda constitucional. Com essa decisão, subsiste, para a administração pública direta, autárquica e fundacional, a obrigatoriedade de adoção do regime jurídico único, ressalvadas as situações consolidadas na vigência da legislação editada nos termos da emenda declarada suspensa.
Parece que as diretorias destas entidades não se conformaram com a necessidade de adequação de concurso público para admissão de pessoal e da instituição do regime estatutário próprio para seus empregados, a partir de 1988.
Além disso, após a Constituição Federal de 1988, a Lei 8112/90 e mesmo com a decisão liminar do STF garantida no Acórdão do julgamento da ADI 2135 em agosto de 2007, a grande maioria dos conselhos federais editou novos Regimentos Internos SEM, NO ENTANTO, criarem ou preverem o regime estatutário e/ou a transformação dos empregos celetistas em cargos públicos e /ou o sistema previdenciário próprio a seus funcionários.
Por que os conselhos federais não implantaram o RJU na década de 1990?
Talvez porque o Executivo (SAF) acatou a sugestão do parecer da sua Advocacia Geral (na época, a CGR) no sentido de aguardar o transitado em julgado das ações existentes na Justiça Federal sobre o tema, e os Conselhos Federais, obviamente, também. Assim, a passividade do Governo Federal e dos Conselhos Federais estaria fundamentada em pareceres da CGR (que defende interesse do Governo Federal…). Isto acontece há mais de 20 anos!!!
A isto pode se chamar conveniência, no mínimo.
Para pensar: alguém conhece funcionário estatutário (de qualquer instituição) que pediu para se tornar celetista porque o RJU é ruim?
Alexandre Augusto de Toni Sartori