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Sou mais Brasília

55448c5d-830c-447f-a231-40c1dd0792e3As pessoas me perguntam: de onde é você? Sou da Bélgica, onde nasci? De Paris, onde morei? Do Rio, onde moro há 30 anos? Prefiro responder: Não, não, eu venho de Brasília, eu sou de Brasília. Foi em Brasília que vivi meus anos de formação – e não só de formação musical, mas de formação pessoal, onde cresci como figura humana e como cidadão.

Minha Brasília tem duas etapas. A primeira foi na infância. Eu cheguei em 1970, 1971. Brasília tinha 11 anos, eu tinha 6. Ali eu me alfabetizei em escola pública, de ótima qualidade, aliás, na 104 Sul, onde a gente morava. Saí com 10 anos, voltei de novo aos 14, em 1979. Morei até 1985 e vivi todo aquele período das novas bandas, dos grupos de rock, o País vivendo a alegria da redemocratização e a gente, em Brasília, fazendo a trilha sonora dessa transformação toda, da revolução cultural que iria sacudir todo o Brasil.

O fenômeno musical que brotou em Brasília tem muito a ver com o clima de abertura que tomava conta do País – de compressão à abertura. O rock exprimiu esse sentimento. Para meu livro, o Felipe Demier e o Romulo Mattos fizeram todo um trabalho de contextualização histórica, digo que vai da Arena ao PT. As mudanças políticas e socioculturais se misturam em Brasília.

Muitas vezes me perguntam como foi crescer à sombra de Niemeyer, daquela arquitetura tão peculiar, e de certa forma tão fria – a acusação recorrente de que Brasília não tem vida, não tem esquina, não estimula a convivência entre as pessoas. Brasília é, sim, um lugar genuinamente diferente de qualquer cidade do planeta. Naquele momento em que vivemos lá, mais ainda. O Plano Piloto, as superquadras, o Lago Sul, o Norte: a configuração geográfica era um desafio para quem já tinha vivido em cidades convencionais mundo afora. Mas pouco a pouco fui descobrindo os códigos da cidade, estabelecendo uma convivência, amizades, as turmas das superquadras, a gente saía para acampar, tomar banho de cachoeira, dormir sob aquele céu. Adolescentes, aprendemos a viver intensamente aquele projeto Lucio Costa-Oscar Niemeyer, cientes de que naquilo havia uma experiência diferente, sem igual. Aí veio a música e tudo ficou ainda mais claro e mais intenso.

A minha Brasília não era só a Brasília da política e dos políticos, era a Brasília do Nelson Piquet, tricampeão mundial de Fórmula 1, que fez seu aprendizado de volante nas avenidas sem culpa da cidade, fazia seus pegas lá no Kasebre; a Brasília que acolhia gente como Ney Matogrosso, que foi parar por lá nos anos 60-61 como enfermeiro do Hospital de Base. Minha Brasília é aquela cidade que acolheu e ainda acolhe tanta gente em busca de oportunidades – e até de uma nova identidade. Uma cidade de histórias nem sempre reveladas e de personagens fascinantes, mas nem sempre reconhecidos. 

A paisagem já é um convite à liberdade. Aquele horizonte de 360 graus, aquele sol intenso, aquele céu tão expressivo, aquelas cores todas – aquilo tem um efeito simbólico nas pessoas. O contraste é que Brasília também é uma cidade onde o tédio reinante é muito forte. Se você não se ocupasse ali, poderia ser tragado pela inércia e até pela depressão. Você tem de achar o que fazer, para não enlouquecer. É, portanto, uma cidade que desafia. Para mim, encontrar essa turma do punk rock foi a salvação. Mas o punk rock era a própria expressão daquela liberdade que a paisagem expunha à nossa frente.

Aquela geração musical era muito cosmopolita, tinha muitas informações de fora, nossos pais eram diplomatas ou professores lá na UnB, ou funcionários públicos de classe média alta, mas ainda assim eu arrisco dizer que Brasília criou um som específico, uma poesia específica, uma atitude musical específica.  

Naquele momento da gestação das bandas, digo, de 1979 a 1983, tinha o Aborto Elétrico, tinha a Blitx, depois veio a Plebe Rude, o Capital, a Legião, as referências eram o punk rock inglês, principalmente. Lembro que o pai do André Mueller (da Plebe Rude) era professorda UnB, recém-chegado de pós-graduação na Inglaterra, a família trouxe muitas informações sobre a cena musical inglesa. As informações deram fruto em Brasília, naquela paisagem, naquela atmosfera de efervescência, mas teve uma hora em que a ficha caiu, para todos nós: “O que a gente faz aqui, ninguém faz”. Continuo achando isso.

Naquele momento, a cidade tinha 200 mil habitantes, hoje dizem que circulam pelo Distrito Federal mais de 4 milhões de pessoas. Claro que muita coisa mudou. Mais uma vez percebi isso ao voltar três semanas atrás para lançar meu livro. Tinha uma quebrada na UnB onde a gente ia toda sexta-feira à noite e ouvia o K7 do Talking Heads. Não existe mais. A turma também ia ao Parkway, o pai do Bi Ribeiro tinha um sítio lá, a gente acampava à beira de um lago, mesmo no inverno, tinha riacho, floresta – o Parkway foi urbanizado, mudou de cara. Outros lugares onde íamos eram a Lanchonete do Janjão, o Gilbertinho, aquele centro comercial do Lago Sul e os bares da Asa Norte, como o Cafofo, onde o Aborto tocava no porão. Depois outras bandas também passaram por lá. Não sei se existem ainda esses lugares tão marcantes do meu passado. Ficaram, sim, os amigos de sempre, pessoas queridas e que continuam me confirmando como Brasília é um lugar tão especial. Gente normal, gente decente, gente criativa.

Até outro dia eu era o paladino da defesa de Brasília contra os que a criticavam. Me tocava, me incomodava. Qualquer um que falasse alguma coisa, eu replicava. Cheguei certa vez a mandar um e-mail irritado ao Fernando Rodrigues, da Folha. Ele odeia Brasília e, coitado, mora lá – ou, sei lá, morava. Tem gente que não admite sequer que a capital tenha mudado para lá. O Afonso Ouro Preto, pai do Dinho e marido da minha mãe, tem em casa uma edição antiga da primeira Constituição da República, a de 1891, e lá, capítulo terceiro, acho eu, já está escrito que a Capital dos Estados Unidos do Brasil seria transferida para determinado lugar do Planalto Central, e que a capital seria uma cidade-Estado. Exatamente no local demarcado onde é hoje o Distrito Federal. JK simplesmente cumpriu o que estava escrito desde 1891.

Sempre digo: acontece muita coisa boa em Brasília e tem muita gente boa por lá. É uma cidade que buscou e construiu uma identidade cultural. Tem a música, a dança, o teatro, e a cena do cinema é interessante. Mas Brasília paga o preço de ter virado a cidade do poder. Sua imagem negativa acaba vindo dessa gente que fica lá dois, três dias por semana, gente que não é de lá, que vem do Brasil inteiro, essas aves de arribação da política que lhe dão má reputação. Brasília não pode pagar pelos pecados alheios. Sempre gritei isso, mas hoje em dia eu percebo, triste, que, desde que o José Roberto Arruda (ex-governador entre 2007 e 2010, que foi preso e posteriormente cassado) foi pego, esse meu discurso perdeu a força. Brasília é a impressão digital do Brasil. No bom e no mau sentido. 

“O meu primeiro contato com Brasília foi um choque. Acostumado ao traçado das cidades tradicionais, fiquei surpreso com a arquitetura e o planejamento urbano modernistas da capital federal. No Plano Piloto de Brasília, avenidas substituem ruas e o espaço é setorizado, ou seja, cada setor deve corresponder a uma respectiva função (embora ultimamente ocorra cada vez mais mistura de atividades nos setores projetados). Eu me perguntava como seria a vida ali, e o que teria de fazer em uma cidade estranha como aquela. Tinha impressão de Brasília como um  lugar inacabado, ainda em formação, e essa avaliação fazia sentido. Afinal, eu tinha 6 anos e a cidade, 11: éramos quase da mesma idade.

Fui alfabetizado em uma instituição pública bem bacana, chamada Escola Parque, perto da quadra 104 Sul, onde eu morava. Ali viviam famílias de diplomatas, de militares de alta patente e de funcionários especializados do Banco do Brasil. Por volta dos 8 anos, retomei o contato com o Bi (Ribeiro), cuja família morava em um bloco próximo ao meu. Ele estava com seus 12 anos e já conhecia o Herbert Vianna, que também residia naquela quadra. Mais ou menos uns seis anos depois, eles formariam Os Paralamas do Sucesso, a primeira banda de amigos meus a se tornar famosa.

Eu estava descobrindo a cidade aos poucos. Andava de skate e esbarrava nas quadras com uns caras mais velhos, próximos dos 20 anos. Eram cabeludos, hippies e tocavam rock progressivo. Nessa época, tinha muita obra em andamento ou abandonada, que as crianças invadiam com skates e carrinhos de rolimã. Também utilizávamos essas construções inacabadas para brincar de polícia e ladrão e, é claro, jogar futebol. Batíamos pelada em terrenos baldios: nos dias de chuva tudo ficava alagado e tomávamos banho de lama.”

(Editora Mauad X, 256 págs., 49,90 reais )

 Carta Capital